Copa do Mundo

Como um conflito Portugal x Marrocos resultou na criação de uma cidade no Brasil

Rivais nas quartas da Copa 2022, portugueses e marroquinos tiveram papel fundamental no nascimento de Mazagão, no Amapá

Por Emanuel Colombari

Portugueses e marroquinos tiveram papel fundamental no nascimento de Mazagão (AP)
Portugueses e marroquinos tiveram papel fundamental no nascimento de Mazagão (AP)
Prefeitura de Mazagão/Site oficial

Marrocos e Portugal se enfrentam neste sábado (10), a partir das 12h (horário de Brasília), pelas quartas de final da Copa do Mundo de 2022, no Catar. Mas se hoje as duas seleções duelam em campo por uma vaga nas semifinais do torneio, os dois países já mediram forças por um território no norte da África – o que acabou resultando, mais tarde, na criação de uma cidade no Brasil.

Mas para contar essa história, é preciso voltar ao início do século XVI, quando os portugueses começaram a ocupar áreas no atual Marrocos. Uma das possessões se tornou a cidade de Mazagão, que virou um importante centro na rota de comércio da Europa com o Oriente.

A região sempre despertou interesse de diversas partes. Exemplo disso foi a disputa do Marrocos contra portugueses, espanhóis e aliados que desencadeou, em agosto de 1578, na Batalha de Alcácer-Quibir. A partir daí e do desaparecimento de Sebastião, rei de Portugal, iniciou-se uma crise sucessória no trono português e a crença do sebastianismo, segundo a qual Dom Sebastião voltaria para resolver os problemas do reino lusitano.

A situação só se resolveu em 1769, com a assinatura de um tratado de paz entre Portugal e Marrocos. Os portugueses se comprometeram a deixar a cidade, que passaria a se chamar apenas El Jadida. Atualmente, com o mesmo nome, o local – a cerca de 100 km de Casablanca – é patrimônio mundial da Unesco.

Mas o que fazer com a população portuguesa que estava no Marrocos? O rei José I decidiu que os moradores da antiga Mazagão seriam enviados para o norte do Brasil, outra região sob controle do reino, para ocupar parte da Amazônia. Começava assim a história de Mazagão, um dos 16 municípios que atualmente compõem o Amapá.

“Em 1769, as famílias que ocupavam a Mazagão marroquina foram transferidas para o Grão-Pará. Pararam, chegaram, ficaram primeiro em Belém - algumas famílias chegaram a ficar quase dois anos, até finalmente perto de duas mil pessoas serem transferidas para a Nova Mazagão, que foi uma vila criada nesse contexto nas margens do rio Mutuacá como uma referência à Mazagão marroquina que foi ocupada pelos mouros e obrigou os portugueses a se retirarem. No período colonial, esse lugar ficou conhecido como Nova Mazagão, e essa parte que hoje é o estado do Amapá não existia enquanto Amapá - era denominado Costa Setentrional do Grão-Pará. As duas vilas principais eram exatamente a vila de Macapá, que atualmente é a capital do estado, e a vila de Nova Mazagão, fundada dentro desse contexto da vinda dessas famílias e da ideia do Estado português em ocupar, garantir a posse desses territórios desde o século XVIII em disputa com a França”, explica Paulo Cambraia, professor de História da Amazônia da Unifap (Universidade Federal do Amapá).

“No século XX, quando esse território foi elevado à categoria de território federal, desmembrando-se das terras do Pará e virando um território federal, e depois consequentemente virando o estado do Amapá, um dos municípios do novo estado do Amapá, criado na virada dos anos 80 para os anos 90, foi exatamente o município de Mazagão Novo, que foi um município criado em um território diferente do antigo da Nova Mazagão do século XVIII, e por isso recebeu o nome de Mazagão Novo. Aí, a antiga vila chamada Nova Mazagão, do período colonial, nesse novo contexto dos anos 90, recebeu o nome de Mazagão Velho”, completou.

Influências atuais

Hoje, Mazagão Novo é a sede do município de Mazagão, enquanto Mazagão Velho é um dos distritos da cidade. E é na parte velha que ocorre a festa de São Tiago, uma das poucas celebrações que ainda registram influência da Mazagão marroquina na cidade. O evento ocorre todos os anos no fim de julho e mistura teatro, manifestação religiosa e cavalhada.

“A comunidade realiza uma encenação, em que toda a cidade participa. Essa encenação representa a batalha de Alcácer-Quibir, a batalha entre mouros e cristãos. Os atores que encenam a peça ao ar livre pelas ruas da cidade, e que simulam as batalhas, são atores da própria comunidade. Essa encenação comemora da chegada dessas famílias que vieram da Mazagão marroquina, e se comemora dessa forma”, explicou Cambraia.

“A principal influência nos dias atuais é essa reprodução de uma batalha, na qual os cristãos portugueses de fato perderam. É a batalha em que eles fogem, são obrigados a abandonar a vila-fortaleza marroquina, mas que ressignificam para engrandecer a coragem do povo cristão frente aos mouros, a tentativa de dominação dos mouros”, completou.

Para o prefeito João da Silva Costa, o Dudão Costa (União), a influência dos dois povos vai além e pode ser visto em diversos comportamentos até hoje.

“Mazagão é o berço da cultura desse estado. Nossa história se inicia com a colonização, com a vinda das famílias portuguesa que habitavam a costa da África, atual Marrocos, em El Jadida. Hoje, nossa cultura e nossa história são lembradas por essas duas nacionalidades, tanto Marrocos quanto Portugal. Isso é muito lembrado no dia 23 de janeiro, quando a cidade faz aniversário”, diz, indo além.

“Quando a gente nota algum comportamento nosso, a gente acaba dizendo: ‘desde nossa origem’, ‘desde o povo afro’, ‘desde o povo português’. É muito presente na nossa cultura, na nossa história e nosso dia a dia. Lá no Mazagão velho, na origem, o povo tem até um sotaque lusitano, uma cultura religiosa muito forte do povo português, além da questão cultural e religiosa da África também”, descreveu Dudão.

E o futebol?

No futebol, o principal representante da cidade era o Mazagão Atlético Clube, que disputou a primeira divisão amapaense entre 1999 e 2011, com boas campanhas: foi vice-campeão em 2000 e terceiro colocado em 2002 e 2009.

Na Copa do Mundo de 2022, o povo de Mazagão é apenas torcedor. E para o prefeito Dudão, a expectativa é de público dividido entre Portugal e Marrocos nas quartas de final.

“O povo brasileiro, em especial aqui em Mazagão, é um povo que gosta muito de futebol. O futebol está no coração do povo aqui. A expectativa em relação a essa partida de futebol, acho que é algo inédito; para nós, vai ser algo bastante comentado. A gente vai torcer. Eu, particularmente, vou torcer para Portugal, que tem mais habilidade. Mas o povo marroquino tem muita raça, muita habilidade também”, elogiou.

“Vai ser uma partida histórica para nós. Uns vão torcer para o Marrocos, outros para Portugal. O futebol é muito presente para nós. A gente vai poder participar, torcer para os dois times com carinho especial pelo povo lusitano, pelo povo marroquino. Nós vamos participar desse jogo e vamos ficar torcendo para os dois, e que vença o melhor. Mas eu vou torcer para Portugal”, reforçou o prefeito, que também joga futebol e se orgulha dos pênaltis bem batidos – diz, em tom de brincadeira, que “são parecidos com os do Neymar”.

Já o professor Paulo Cambraia torcerá para o Marrocos – entre outros motivos, pelo apoio demonstrado pela equipe à causa palestina. E acredita que as referências históricas do povo marroquino tenham pouca influência, não apenas na cidade, mas também na torcida local.

“As famílias que vieram da Mazagão marroquina para cá, na verdade, eram famílias compostas na maioria por militares portugueses que serviam lá e que não tinham um vínculo com o território da Mazagão marroquina – de ter nascido lá, de uma construção afetiva lá com o lugar. Eram portugueses, militares na maioria, que no momento especifico da ameaça moura, tiveram que fugir. Nesse sentido, historicamente, não se constituiu aqui na nova Mazagão esse vínculo, esse elo com a Mazagão do outro lado do Atlântico. Tanto que a principal herança, a principal construção memorialística desse processo, é a reprodução da batalha entre mouros e cristãos a partir da perspectiva cristã, do heroísmo cristão, do sofrimento cristão de resistir – e que foi a derrota dos cristãos, e que aqui transforma a derrota em uma vitória moral”, analisou.

“As pessoas não vão torcer por Marrocos por conta desse elemento. Talvez, como todo brasileiro, torçam para o Marrocos naquele contexto em que nós sempre, invariavelmente, somos levados a torcer ou simpatizar com os ‘mais fracos’, que não têm tanta tradição, que podem ameaçar a derrubada de uma seleção tradicional. Nesse sentido, pode ser que a torcida maior entre Portugal e Marrocos seja para Marrocos, mas não necessariamente ligado a esse elemento histórico.”

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