"Era horrível, não tinha nada a ver com um hospital nem atendimento médico", comenta Elke* o que lhe aconteceu há mais de 50 anos numa clínica de saúde sexual na antiga República Democrática Alemã (RDA), de regime socialista.
Mulheres e meninas a partir dos 12 anos de idade eram detidas pela polícia sob suspeita de terem doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Mas, na verdade, era uma forma de punição ou "reeducação" porque "elas não se encaixavam no sistema", relata Elke.
As vítimas eram levadas para clínicas de saúde sexual sob vigilância (denominadas Venerologische Stationen – enfermarias venéreas), onde ficavam detidas por semanas a fio e sofriam abusos. Os depoimentos de detidas nas clínicas incluem relatos de estupro e tortura.
"Era o abuso sistemático de poder por um sistema político", define Florian Steger, presidente do Instituto de História, Filosofia e Ética da Medicina da Universidade de Ulm.
Steger entrevistou mais de 100 mulheres e ex-funcionários dessas clínicas e examinou a documentação detalhada que fora arquivada por órgãos como o Stasi, o Ministério de Segurança da Alemanha Oriental – na prática, sua polícia secreta.
As mulheres e meninas visadas – nunca homens ou meninos – eram consideradas diferentes da sociedade convencional porque queriam viver livremente. Isso significava, segundo Steger, que poderiam ter feito algo como faltar à escola ou pedir carona para ir à boate no sábado à noite. Muitas foram acusadas de ser prostitutas.
Sistema médico usado para disciplinar e punir
"O objetivo era moldar mulheres socialistas que levariam uma vida normal, que iam trabalhar, em algum momento ter um marido, um filho e depois voltar a trabalhar", resume Steger.
Uma parte do sistema médico acabou instrumentalizada para fins ideológicos. As clínicas eram usadas para abusar das mulheres e adolescentes, para disciplinar e punir, sob o pretexto de que seriam portadoras de DSTs.
"É importante observar que essas mulheres não tinham uma boa base, porque em geral vinham de circunstâncias difíceis", prossegue Steger. "Muitas já tinham sofrido abusos na infância e adolescência."
Após a morte de seus pais, Elke, então com 12 anos, entrou no sistema estatal de acolhimento infantil. Aos 16 anos, foi estuprada por um oficial russo, o que resultou numa gravidez. Após denunciar o militar às autoridades russas, ela foi interrogada várias vezes. Mais tarde, porém, descobriu que os documentos com seus depoimentos haviam desaparecido.
Apesar de bastante rebelde, disse, ela nunca faltou ao trabalho, roubou, nem se envolveu em prostituição. Sem nenhum apoio do Estado e lutando para sobreviver, ela só queria cuidar de si mesma e do seu bebê. Mais tarde ele foi tirado dela, apesar de sua recusa em entregá-lo para adoção.
Elke acabara de completar 18 anos e estava trabalhando numa loja de departamentos, quando, "numa bela manhã" de 1970, a polícia veio buscá-la. Supostamente tratava-se de resolver uma questão policial, porém Elke foi levada para uma clínica na cidade de Halle, onde foi forçada a entregar seus pertences, recebeu um vestido cinza e foi trancada numa ala superlotada, onde algumas "pacientes" dormiam no chão.
Exames invasivos e coquetéis de medicamentos
Elke foi informada que tinha gonorreia – uma mentira, segundo ela: "Eu não tinha marido, não tinha namorado, não tinha nada. Estava consumida pelo estupro e [cuidando de] uma criança, não tinha gente ao meu redor."
Pesquisas indicam que apenas cerca de 20% das mulheres atendidas nas clínicas estavam de fato infectadas com uma DST. As pacientes tinham seus cabelos raspados,, e quem violasse as regras recebia injeções dolorosas de uma substância desconhecida, que provocava dores nos membros.
Depois de um desses incidentes, Elke foi transferida para outra clínica em Leipzig, que fazia parte de uma rede em cidades de toda a antiga Alemanha Oriental, inclusive Dresden, Rostock e Berlim Oriental.
Ela descreve como as detentas eram submetidas a exames ginecológicos diários, em que um espéculo aquecido num bico de Bunsen era inserido na vagina até o colo do útero. Ela se lembra de ter recebido um coquetel de drogas que a deixou incapacitada por três dias. E se pergunta se isso causou a doença renal crônica que a atormenta desde os 20 anos.
É difícil chegar a um número exato de quantas passaram pelas clínicas, mas foram milhares – por exemplo, 5 mil apenas na cidade de Halle. Embora os abusos generalizados que ocorriam nos orfanatos e nos Jugendwerkhöfe, os famigerados centros de detenção juvenil da antiga Alemanha Oriental tenham sido bem pesquisados e documentados, pouco se sabe sobre o que aconteceu nessas clínicas para mulheres.
Consequências físicas e psicológicas duradouras
"É um capítulo particularmente sombrio da história. Ninguém quer ouvir falar sobre isso", comenta Christine Bergmann, membro da Comissão Independente sobre Abuso Sexual Infantil e a única funcionária do órgão nascida e criada na RDA.
"Eles chamavam essas clínicas de 'Tripperburgen' (redutos da gonorreia) e eram até assunto de piada, porque não se sabia exatamente o que acontecia lá", disse. Além do estigma ligado às clínicas, as mulheres eram forçadas a assinar acordos de confidencialidade e proibidas de falar sobre o que vivenciassem.
Criada em 2016 por uma resolução do Bundestag (câmara baixa do Parlamento alemão), a Comissão Independente sobre Abuso Sexual Infantil investiga a extensão, a natureza e as consequências do abuso sexual infantil na RDA e na antiga República Federal da Alemanha (RFA).
A comissão já realizou investigações e audiências sobre abuso físico e sexual na antiga Alemanha Oriental. Agora, seu foco está voltado para instituições de detenção, como essas clínicas para mulheres.
O severo trauma vivido nas clínicas impediu muitas das vítimas de concluírem seus estudos, indo em casas de repouso estatais e sofrendo consequências físicas e psicológicas duradouras. Também são comuns sintomas como distúrbios do sono e dificuldade de estabelecer relacionamentos duradouros. Durante décadas, muitas estavam aterrorizadas demais para procurar ajuda profissional.
"O que precisa ficar claro é que ninguém foi responsabilizado por isso, ninguém foi punido por isso em lugar algum", condena Bergmann. Devido às datas de prescrição, não se pode mais iniciar ações legai. Muitas das testemunhas, vítimas e perpetradores também já morreram.
A esperança é que se realizem mais pesquisas, o que permitindo que mais mulheres falem, documentem e reconheçam o que aconteceu com elas, para que esse capítulo sombrio da história da RDA nunca seja esquecido.
Os especialistas pedem mais pesquisas sobre o tema, melhor acesso ao material arquivado e um sistema de apoio para as mulheres atingidas, incluindo indenização e aconselhamento.
Em sua casa na Saxônia-Anhalt, Elke considera que teve sorte. Tendo perdido os pais ainda jovem e crescido no sistema de lares para crianças, ela aprendeu a ser forte e a lutar pela vida. Depois de uma pausa, continua: "O único problema que eu tinha era psicológico. Fiquei arrasada porque simplesmente não conseguia suportar tanta injustiça", diz, caindo em lágrimas.
(*Nome alterado para proteger o anonimato).
Autor: Helen Whittle